quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Nossas Canções do Exílio


Canção do Exílio

(Gonçalves Dias)

"Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossas flores têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá."


Canto de Regresso à Pátria

(Oswald de Andrade)

Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos aqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá

Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.

Nova Canção do Exílio

(Carlos Drummond de Andrade)

Um sabiá
na palmeira, longe.

Estas aves cantam
um outro canto.

O céu cintila
sobre flores úmidas.
Vozes na mata,
e o maior amor.

Só, na noite,
seria feliz:
um sabiá,
na palmeira, longe.

Onde tudo é belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá,
na palmeira, longe.)

Ainda um grito de vida e
voltar
para onde tudo é belo
e fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe.

Canção do Exílio

(Murilo Mendes)

Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas.
Os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossa flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil-réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de identidade!

Canção do Exílio

(Casimiro de Abreu)

Se eu tenho que morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já:
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro
Respirando êste ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
Os gozos do meu lar!

O país estrangeiro mais belezas
Do que a pátria não tem;
E este mundo não val um só de beijos
Tão doces de uma mãe!

Dá-me os sítios gentis onde eu brincava
Lá na quadra infantil;
Dá que eu veja uma vez o céu da pátria,
O céu do meu Brasil!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já:
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O elixir da longa vida, Honoré Balzac

Num suntuoso palácio de Ferrara, por urna noite de in­verno, dom Juan Belvidero obsequiava um príncipe da Casa de Este. Naquela época, uma festa era um espetáculo mara­vilhoso, que somente extraordinárias riquezas ou o poderio de um senhor se podiam dar o luxo de oferecer.
Sentadas ao redor de uma mesa iluminada por velas perfumadas, sete alegres mulheres trocavam leves conceitos, por entre admiráveis obras-primas, cujos mármores brancos se destacavam nas paredes de estuque vermelho e contras­tavam com ricos tapetes da Turquia. Vestidas de cetim, fais­cantes de ouro e cobertas de pedrarias que brilhavam menos que seus olhos, todas elas relatavam paixões violentas, mas variadas, como o eram suas belezas. Não diferiam nem pelas palavras nem pelas idéias; a expressão, o olhar, alguns gestos ou a inflexão de voz serviam às suas palavras de comentários libertinos, lascivos, melancólicos ou prazenteiros.
Uma parecia dizer: “Minha beleza sabe reaquecer o co­ração gelado dos velhos”.
Outra: “Gosto de ficar deitada sobre coxins, para pen­sar com embriaguez naqueles que me adoram”.
Uma terceira, noviça nessas festas, queria enrubescer: “No fundo do coração sinto remorso!”, dizia. “Sou católica e tenho medo do inferno. Mas eu vos amo tanto, ah!, tanto e tanto, que posso vos sacrificar a eternidade!”
A quarta, bebendo um copo de vinho de Quio, excla­mava: “Viva a alegria! Eu adquiro uma existência nova em cada aurora! Esquecida do passado, atordoada ainda pelos assaltos da véspera, todas as noites absorvo uma vida de feli­cidade, uma vida cheia de amor!”
A mulher sentada junto de Belvidero olhava para ele com olhos congestionados. Estava silenciosa: “Eu não confiaria nos bravi[NC1]  para matar o meu amante, se ele me abando­nasse!” Em seguida, ela rira; mas sua mão convulsiva amas­sava uma caixinha de ouro, miraculosamente esculpida.
—    Quando serás grão-duque? — perguntou a sexta ao príncipe, com uma expressão de alegria mortífera nos dentes, e de delírio báquico nos olhos.
—    E tu, quando morrerá teu pai? — disse a sétima, rindo e jogando seu ramalhete a dom Juan, com um gesto sedutor e pueril. Era uma inocente donzela acostumada a brincar com todas as coisas sagradas.
— Ah! nem me faleis disso! — exclamou o jovem e belo dom Juan Belvidero. — Existe apenas um pai eterno no mundo, e a desgraça quer que seja o meu!
As sete, cortesãs de Ferrara, os amigos de dom Juan e o próprio príncipe soltaram um grito de horror. Duzentos anos depois, e sob Luis XV, as pessoas de bom gosto teriam rido dessa tirada. Mas será que no começo de uma orgia as almas teriam ainda bastante lucidez? Malgrado o fogo das velas, o grito das paixões, o aspecto dos vasos de ouro e de prata, o vapor dos vinhos, malgrado a contemplação das mais sedu­toras mulheres, será que havia ainda, no fundo dos corações, um pouco dessa vergonha pelas coisas humanas e divinas, que luta até que a orgia a tenha mergulhado nas derradeiras vagas de um vinho cintilante? Não obstante, já as flores tinham sido esmagadas, os olhos se embruteciam, a embria­guez chegava, segundo a expressão de Rabelais, até as san­dálias. Naquele momento de silêncio, uma porta se abriu; e, como no festim de Baltasar, Deus se fez reconhecer: apare­ceu sob a forma de um velho criado de cabelos brancos, andar trêmulo, sobrancelhas contraídas; entrou com ex­pressão triste, fulminou com o olhar as coroas, as taças de prata dourada, as pirâmides de frutas, as luzes da festa, o arroxeado dos rostos surpresos e as cores das almofadas cal­cadas pelos braços brancos das mulheres; por fim, ele jogou um véu naquela loucura, dizendo estas palavras sombrias, em voz cava:
—    Senhor, vosso pai está à morte.
Dom Juan se levantou, fazendo aos hóspedes um gesto que podia se traduzir por: “Desculpem-me, isso não acon­tece todos os dias”.
A morte de um pai não surpreende freqüentemente os jovens, no meio dos esplendores da vida, no seio das loucas idéias de uma orgia? A morte é tão repentina nos seus ca­prichos, como um cortesão o é nos seus desdéns; mais fiel, contudo, ela jamais enganou alguém.
Depois que dom Juan fechou a porta e caminhou por uma comprida galeria fria, tanto quanto escura, esforçou-se por assumir uma atitude teatral; porque, ao pensar em seu papel de filho, ele havia deixado sua alegria com o guardanapo. A noite estava escura. O silencioso servidor que con­duzia o jovem para uma câmara mortuária iluminava muito mal seu patrão, de maneira que a MORTE, ajudada pelo frio, o silêncio, a obscuridade, por uma reação da bebedeira talvez, pôde infundir algumas reflexões na alma daquele dissipador; ele interrogou sua vida e tornou-se pensativo, como um ho­mem processado que se encaminha para o julgamento.
Bartolomeu Belvidero, pai de dom Juan, era um velho nonagenário, que passara a maior parte da vida nas transa­ções comerciais. Tendo atravessado muitas vezes as talismãnicas regiões do Oriente, adquirira imensas riquezas e conhe­cimentos mais preciosos, dizia ele, que o ouro e os diamantes, com os quais, no momento, não se importava absolutamente. “Prefiro um dente a um rubi e o poder ao saber”, exclamava às vezes, sorrindo. Esse bom pai gostava de ouvir dom Juan relatar-lhe alguma travessura da juventude e dizia com ar motejador, prodigalizando-lhe ouro: “Meu caro filho não faças senão as tolices que te divertirem”. Era o único velho que sentia prazer em ver um moço; o amor paterno disfar­çava sua caduquice, pela contemplação de uma vida tão bri­lhante. Na idade de sessenta anos, Belvidero se apaixonara por um anjo de paz e de beleza. Dom Juan fora o único fruto desse amor tardio e passageiro. Havia quinze anos que o pobre homem deplorava a perda de sua cara Joana. Os numerosos servidores e o filho atribuíam a essa dor de velho os hábitos singulares que ele contraíra. Refugiado na ala mais incômoda do palácio, Bartolomeu só raramente saía, e o pró­prio dom Juan não podia penetrar nos aposentos do pai sem permissão. Se esse voluntário anacoreta ia e vinha no palá­cio ou pelas ruas de Ferrara, parecia procurar uma coisa que lhe faltava; andava sempre sonhador, indeciso, preocupado como um homem que luta com uma idéia ou com uma lem­brança. Enquanto o rapaz dava festas suntuosas e o palácio ressoava com as explosões de sua alegria, enquanto os cavalos escarvavam a terra nas estrebarias, enquanto os pajens bri­gavam, jogando dados nos degraus, Bartolomeu comia sete onças de pão por dia, e bebia água. Se precisava de um pouco de galinha, era para dar os ossos a um cãozinho de caça, negro, seu companheiro fiel. Jamais se queixava do ruído. Durante sua moléstia, se o som da trompa de caça e os latidos dos cães o surpreendiam no sono, contentava-se em dizer: “Ah! é dom Juan que volta!” Nunca se encontrara sobre a terra um pai tão benévolo e tão indulgente; por isso o jovem Belvidero, acostumado a tratá-lo sem cerimônia, tinha todos os defeitos do filho mimado; vivia com Barto­lomeu como vive uma caprichosa cortesã com um velho amante, fazendo desculpar uma impertinência com um sor­riso, vendendo seu bom humor e deixando-se amar. Recons­truindo, pelo pensamento, o quadro de seus verdes anos, dom Juan se apercebeu que lhe seria difícil encontrar uma falha na bondade do pai. Sentindo nascerem os remorsos no fundo do coração, no momento em que atravessava a gale­ria, quase perdoou a Belvidero ter vivido tanto tempo. Voltava aos sentimentos de piedade filial, como um ladrão se torna honesto pelo gozo possível de um milhão bem roubado. Bem depressa o rapaz franqueou as altas e frias salas que compunham os aposentos de seu pai. Depois de ter experi­mentado os efeitos de uma atmosfera úmida, respirado o ar espesso, o odor rançoso que se exalava de velhas tapeçarias e de armários cobertos de poeira, ele se encontrou no quarto antigo do velho, diante de um leito nauseabundo, junto de um fogo quase extinto. Uma lamparina colocada numa mesa de forma gótica lançava, a intervalos regulares, fachos de luz mais ou menos fortes sobre o leito, e mostrava assim a figura do velho sob aspectos sempre diferentes. O frio sibi­lava através das janelas mal fechadas; e a neve, chicoteando os vitrais, produzia um ruído surdo. Aquela cena formava um contraste com a que dom Juan acabava de deixar e não pôde furtar-se a estremecer. Depois sentiu frio, quando, apro­ximando-se do leito, um súbito clarão, impelido por uma ra­jada de vento, iluminou a cabeça do pai: suas feições estavam descompostas, a pele, colada fortemente aos ossos, tinha cores esverdeadas que a brancura do travesseiro, sobre o qual o velho repousava, tornava ainda mais horríveis; contraída pelo sofrimento, a boca entreaberta e despojada de dentes deixava passar alguns suspiros, cuja energia lúgubre era esti­mulada pelos bramidos da tempestade. Apesar dos traços de destruição, revelava-se naquela cabeça um caráter de incrível pujança. Ali, um espírito superior combatia a morte. Os olhos, cavados pela doença, conservavam uma fixidez singu­lar. Parecia que Bartolomeu procurava matar com seu olhar de agonizante um inimigo sentado ao pé do leito. Esse olhar, fixo e frio, era tanto mais pavoroso quanto a cabeça perma­necia numa imobilidade semelhante à dos crânios colocados nas mesas dos médicos. O corpo inteiramente moldado pelos lençóis do leito indicava que os membros do velho conser­vavam ainda a mesma tensão. Tudo estava morto, menos os olhos. Os sons que lhe saíam da boca tinham, em suma, qualquer coisa de mecânico. Dom Juan sentiu certa vergonha de chegar junto ao leito do pai agonizante conservando ainda, no peito, um ramalhete de cortesã, levando para ali os per­fumes de uma festa e os vapores do vinho.
—    Tu te divertias! — exclamou o velho, percebendo a presença do filho.
No mesmo instante, a voz pura e ligeira de uma cantora que deliciava os convivas, reforçada pelos acordes da viola com a qual ela se acompanhava, dominou os uivos da tem­pestade e ressoou até aquela câmara fúnebre. Dom Juan nada quis ouvir daquela selvagem afirmação dada ao pai.
—    Não te quero mal por isso, meu filho.
Essas palavras cheias de doçura fizeram mal a dom Juan, que não perdoou ao pai a pungente bondade.
—    Que remorsos para mim, meu pai! — disse-lhe hipocritamente.
—    Pobre Juanino — replicou o agonizante com voz surda —, tenho sido tão condescendente contigo que não saberias desejar a minha morte?
—    Oh! — exclamou dom Juan - se fosse possível chamar-vos à vida novamente, eu vos daria uma parte da minha! — “A gente pode sempre dizer essas coisas”, pensava o dissipador, “é como se eu oferecesse o mundo à minha amada!” Mal acabara o seu pensamento, o velho cão de caça uivou. Aquela voz inteligente fez estremecer dom Juan, que acreditou ter sido compreendido pelo cão.
—    Eu bem sabia, meu filho, que podia contar contigo exclamou o moribundo. — Eu viverei. Vai, ficarás con­tente. Viverei, mas sem desperdiçar um único dos dias que te pertencem.
“Ele delira”, disse dom Juan a si mesmo. Depois acres­centou em voz alta: — Sim, meu querido pai, vivereis certa­mente, tanto quanto eu, pois vossa imagem estará sempre dentro do meu coração.
—    Não se trata dessa vida — disse o velho senhor, reunindo suas forças para se soerguer no leito, pois ficou emocionado por uma dessas suspeitas que não nascem senão no leito de morte. — Ouve, meu filho — continuou ele com voz fraca, por causa daquele último esforço —, não tenho mais desejo de morrer do que tu de abandonar as amantes, o vinho, os cavalos, os falcões, os cães e o ouro.
“Acredito”, pensou ainda o filho, ajoelhando-se à cabe­ceira do leito e beijando uma das mãos cadavéricas de Bar­tolomeu. — Mas — continuou em voz alta —, meu pai, meu querido pai, a gente precisa se submeter à vontade de Deus.
— Deus sou eu — replicou o velho, entre dentes.
— Não blasfemeis — exclamou o moço, vendo o ar ameaçador que assumiram as feições do pai. — Tomai cuida­do, acabastes de receber a extrema-unção, e eu não me con­solaria de vos ver morrer em estado de pecado.
— Queres ouvir-me? — gritou o moribundo, cuja boca se crispou.
Dom Juan se calou. Reinou no aposento um horrível silêncio. Através dos silvos pesados da neve, os acordes da viola e a voz deliciosa chegavam ainda fracos como um dia que nasce. O moribundo sorriu.
— Agradeço-te por teres convidado cantoras, por teres trazido música! Uma festa, mulheres jovens e belas, alvas, de cabelos negros! todos os prazeres da vida; deixa-os ficar, vou renascer.
“O delírio está no auge”, pensou dom Juan.
—    Descobri um meio de ressuscitar. Ouve! Procura na gaveta da mesa; poderás abri-la apertando um botão de metal oculto pelo puxador.
—    Já o encontrei, meu pai.
—    Isso, aí mesmo, pega um frasquinho de cristal de rocha.
—    Ei-lo.
—    Gastei vinte anos a... — Nesse momento o velho sentiu a aproximação da morte e reuniu toda a sua energia, para dizer: — Logo que eu tenha soltado o último suspiro, tu me esfregarás todo com essa água, e eu renascerei.
—    Há muito pouca água — replicou o rapaz.
Se Bartolomeu não podia mais falar, tinha ainda a fa­culdade de ouvir e de ver, e a essas palavras, sua cabeça se voltou para dom Juan com um movimento de apavorante brusquidão, o pescoço ficou torto como o de uma estátua de mármore que o pensamento do escultor condenou a olhar de lado, os olhos arregalados adquiriram uma horrorosa imo­bilidade. Estava morto, morto, a perder sua única, sua últi­ma ilusão. Ao procurar asilo no coração do filho, encontrou um túmulo mais profundo do que o que os homens costu­mam fazer para seus mortos. Seus cabelos se arrepiaram de horror, e seu olhar convulso falava ainda. Era um pai que se levantava irado do sepulcro, para pedir vingança a Deus!
—    Muito bem! o coitado se acabou — exclamou dom Juan.
Apressado em ver o misterioso cristal à luz da lampa­rina, como um bebedor consulta a garrafa no fim da refeição, ele não vira branquear os olhos do pai. O cão, boquiaberto, contemplava alternativamente seu dono morto e o elixir, da mesma forma que dom Juan olhava ora para o pai, ora para o frasco. A lamparina produzia chamas indecisas. Era pro­fundo o silêncio, a viola emudecera. Belvidero estremeceu, crendo ver seu pai mexer-se. Intimidado com a expressão tensa de dois olhos acusadores, ele os fechou, como teria cerrado uma persiana batida pelo vento, durante uma noite de outono. Manteve-se de pé, imóvel, perdido num mundo de pensamentos. De repente, um ruído rascante, parecido com o atrito de molas enferrujadas, rompeu o silêncio. Dom Juan, surpreendido, quase deixou cair o vidro. Um suor mais frio que o aço de um punhal brotava de seus poros. Um cuco de madeira pintada surgiu acima do relógio e can­tou três horas. Era uma dessas engenhosas máquinas com o auxílio das quais os sábios daquele tempo se faziam despertos à hora marcada para os seus trabalhos. A aurora tingia já as vidraças. Dom Juan tinha passado dez horas a refletir. O velho relógio era mais fiel em seu serviço, que ele no cumpri­mento de seus deveres para com Bartolomeu. Aquele meca­nismo compunha-se de madeira, polias, cordas, engrenagens, enquanto ele tinha o mecanismo particular ao homem, cha­mado coração. Para não mais se arriscar a perder o misterioso licor, o cético dom Juan o recolocou na gaveta da mesinha gótica. Nessa hora grave, ouviu nas galerias um surdo tumulto: eram vozes convulsas, risos abafados, passos ligeiros, frufru de sedas, enfim, o ruído de um grupo jovem que trata de se recolher. A porta se abriu, e o príncipe, os amigos de dom Juan, as sete cortesãs, as cantoras apareceram, numa desordem bizarra, como dançarinas surpreendidas pela cla­ridade da manhã, quando o sol luta com a chama opalescente das velas. Vinham para oferecer ao jovem herdeiro as con­solações de praxe.
—    Oh! oh! então o pobre dom Juan levaria a sério essa morte? — disse o príncipe ao ouvido de Brambilla.
—    Mas o pai dele era um homem muito bom — res­pondeu ela.
Contudo, as meditações noturnas de dom Juan tinham imprimido em seus traços uma expressão tão chocante, que impôs silêncio àquele grupo. Os homens permaneceram imóveis. As mulheres, cujos lábios ainda estavam ressecados pelo vinho, cujas faces estavam ainda marcadas pelos beijos, ajoe­lharam-se e se puseram a rezar. Dom Juan não pôde deixar de estremecer, ao ver os esplendores, as jóias, os risos, os cantos, a juventude, a beleza, o poder, toda a vida personi­ficada, prosternando-se assim diante da morte. Mas, naquela adorável Itália, a devassidão e a religião se acasalavam tão bem, que a religião era um deboche e o deboche, uma reli­gião! O príncipe apertou afetuosamente a mão de dom Juan; depois, todos os rostos, tendo esboçado simultaneamente um mesmo trejeito, misto de tristeza e indiferença, aquela fan­tasmagoria desapareceu, deixando a sala vazia. Era bem a imagem da vida! Ao descer as escadas, o príncipe disse a Ri­vabarella: — Hein! quem teria acreditado, dom Juan, um fanfarrão de impiedade? Ele gosta do pai.
—    Reparaste no cachorro preto? — perguntou Bram­billa.
—    Ei-lo imensamente rico — replicou, suspirando, Bianca Cavatolino.
—    Que me importa?! — exclamou a altiva Varonese, a que tinha quebrado a caixinha.
—    Como, que te importa? — exclamou o duque. — Com os seus escudos, ele é tão príncipe quanto eu.
A princípio, agitado por mil pensamentos, dom Juan flutuou entre várias resoluções. Depois de ter tomado co­nhecimento da fortuna acumulada por seu pai, ele voltou, ao cair da noite, à câmara mortuária, com a alma encoscorada por um terrível egoísmo. Encontrou no aposento todo o pes­soal de sua casa, ocupado cm reunir os ornamentos da essa sobre a qual o falecido senhor ia ser exposto no dia seguinte, em  meio a uma soberba câmara-ardente, curioso espetáculo que toda Ferrara devia vir admirar. Dom Juan fez um sinal, e a criadagem estacou, interdita, trêmula.
—    Deixai-me sozinho aqui — disse ele com voz alte­rada; — não deveis voltar senão no momento em que eu sair.
Quando os passos do velho servidor que se ia por últi­mo apenas ressoaram debilmente nos ladrilhos, dom Juan fechou precipitadamente a porta, e, seguro de estar só, ex­clamou: — Tentemos!
O     corpo de Bartolomeu estava deitado sobre uma gran­de mesa. Para escamotear a todos os olhos o horrível espe­táculo de um cadáver, que uma extrema decrepitude e a magreza tornavam parecido com um esqueleto, os embalsa­madores tinham estendido sobre o corpo uma mortalha que o envolvia inteiramente, menos a cabeça. Aquela espécie de múmia jazia no meio do quarto; e a mortalha, naturalmente mole, desenhava, vagamente, as formas, porém mais agudas, tensas e magras. O rosto já estava marcado de grandes man­chas roxas, que indicavam a necessidade de concluir o em­balsamamento. Malgrado o ceticismo com o qual vinha ar­mado, dom Juan tremeu ao destampar o mágico frasco de cristal. Quando chegou perto da cabeça, foi mesmo cons­trangido a esperar um momento, tanto tremia. Mas esse jovem desde cedo fora muito subitamente corrompido pelos costumes de uma corte dissoluta; uma reflexão digna do duque de Urbino veio assim lhe dar a coragem que agui­lhoava um vivo sentimento de curiosidade; parecia mesmo que o demônio tinha soprado estas palavras que ressoa­ram no coração: “Embebe um olho!” Pegou um pano e, depois de o ter parcimoniosamente molhado no precioso líquido, passou-o ligeiramente sobre a pálpebra direita do cadáver. O olho se abriu.
—    Ah! Ah! — disse dom Juan, segurando o frasco na mão, como agarramos em sonho o ramo pelo qual estamos suspensos acima de um precipício.
Via um olho cheio de vida, um olho de criança, numa cabeça de morto, a luz tremia ali no meio de um fluido jo­vem; e, protegida por belos cílios negros, ela cintilava seme­lhante a esses clarões únicos que o viajor percebe num campo deserto, nas tardes de inverno. Aquele olho flamejante pa­recia querer se atirar sobre dom Juan, e pensava, acusava condenava, ameaçava, julgava, falava, gritava, mordia. Todas as paixões humanas ali se agitavam. Eram as súplicas mais ternas: uma cólera de rei, depois o amor de uma menina pedindo graça aos seus carrascos; por fim, o olhar profundo que lança um homem sobre os homens, escalando o último degrau do patíbulo. Transbordava tanta vida naquele frag­mento de vida, que dom Juan, apavorado, recuou, andou pelo quarto, sem ousar olhar para o olho, que ele revia no assoalho, nas tapeçarias. O quarto estava salpicado de pontas de fogo, de vida, de inteligência. Por toda parte brilhavam olhos que gritavam atrás dele!
— Ele seria bem capaz de viver cem anos — exclamou involuntariamente no momento em que, levado diante do pai por uma influência diabólica, contemplava aquela centelha luminosa.
Súbito, a pálpebra inteligente se fechou e se reabriu bruscamente, como a de uma mulher que consente. Se uma voz tivesse gritado: “Sim!”, dom Juan não teria ficado mais horrorizado.
“Que fazer?”, pensou ele. Teve coragem de tentar fe­char a pálpebra branca. Foram inúteis os esforços.
“Furá-lo? Seria um parricídio?”, perguntou-se a si mesmo.
“Sim”, disse o olho por meio de uma piscadela, de uma espantosa ironia.
— Ah! Ah! — exclamou dom Juan — há feitiçaria por aí. — E aproximou-se do olho para esmagá-lo. Uma gros­sa lágrima rolou nas faces cavadas do cadáver e caiu na mão de Belvidero.
— Está escaldante — exclamou ele, sentando-se.
Aquela luta o havia fatigado, como se ele tivesse com­batido, a exemplo de Jacó, contra um anjo.
Levantou-se, por fim, dizendo: — Tomara que não saia sangue! — Depois, juntando o que lhe faltava de coragem para ser infame, esmagou o olho, calcando-o com um pano, mas sem olhar para ele. Um gemido inesperado, mas terrí­vel, se fez ouvir. O pobre cãozinho expirava, uivando.
“Saberia o segredo?”, perguntou-se dom Juan, olhando o fiel animal.


Dom Juan Belvidero passou por um filho piedoso. Man­dou construir um monumento de mármore branco sobre o túmulo do pai, e confiou a execução das esculturas aos mais célebres artistas do tempo. Não ficou perfeitamente tran­qüilo, senão no dia em que a estátua paternal, ajoelhada diante da Religião, impôs seu enorme peso sobre aquele fos­so, no fundo do qual enterrou o único remorso que tinha aflorado em seu coração nos momentos de lassidão física.
Ao inventariar as imensas riquezas acumuladas pelo velho orientalista, dom Juan tornou-se avarento: não tinha ele que prover de dinheiro duas vidas humanas? Seu olhar profun­damente perscrutador penetrou no princípio da vida social e devassou tanto mais o mundo, quanto o via através de urna tumba. Analisou os homens e as coisas, para acabar de uma vez com o Passado, representado pela História; com o Pre­sente, configurado pela Lei; com o Futuro, revelado pelas Religiões. Pegou a alma e a matéria, lançou-as num cadinho, nada encontrou aí, e desde então ele se tornou DOM JUAN!
Mestre das ilusões da vida, jovem e belo, lançou-se à vida, desprezando o mundo, mas apoderando-se do mundo. Sua felicidade não podia ser essa felicidade burguesa que se sustenta com um cozido periódico, com um bom aquecedor no inverno, com um lume para a noite e chinelas novas em cada trimestre. Não, ele se apoderou da existência, como um macaco que agarra uma noz, e, sem se divertir por muito tempo, despojou sabiamente os vulgares envoltórios do fruto, para degustar a polpa saborosa. A poesia e os sublimes trans­portes da paixão humana não lhe subiram além do calcanhar. Não cometeu nenhum dos erros dos homens poderosos que, imaginando às vezes que as pequenas almas crêem nas gran­des, aconselham a trocar os altos pensamentos do porvir pela moedinha dos nossos ideais transitórios. Bem poderia, como eles, andar com os pés na terra e a cabeça nos céus, mas preferia sentar-se, e secar sob seus beijos mais de um lábio de mulher carinhosa, fresca e perfumada; porque, semelhante à morte, por onde passava devorava tudo sem pudor, que­rendo um amor possessivo, um amor oriental, de prazeres longos e fáceis. Não amando senão a mulher nas mulheres, fez da ironia uma outra natureza da sua alma. Quando suas amantes se serviam de um leito para subir aos céus, onde iam se perder no seio de um êxtase embriagador, dom Juan as seguia grave, expansivo, sincero, tanto quanto sabe ser um estudante alemão. Mas ele dizia EU, quando a amante, louca desvairada, dizia NÓS! Sabia admiravelmente bem dei­xar-se prender por uma mulher. Era sempre bastante forte para lhe fazer crer que tremia como um jovem ginasiano que diz à sua primeira dama, num baile: “Gostais de dançar?” Mas sabia também enrubescer a propósito, tirar sua espada poderosa e humilhar os comendadores. Havia ridículo em sua simplicidade e riso em suas lágrimas, porque ele sempre sou­be chorar tanto quanto uma mulher que diz ao marido: “Dá-me uma carruagem, senão morro tuberculosa”.
Para os negociantes o mundo é um pacote de merca­dorias ou um maço de notas em circulação; para a maior parte dos moços é uma mulher; para algumas mulheres é um homem; para certos espíritos é um salão, uma salinha, um quarteirão, uma cidade; para dom Juan, o universo era ele!
Modelo de graça e de nobreza, de um espírito sedutor, aportou sua barca a todas as praias; mas, deixando-se con­duzir, não ia senão até onde queria ser levado. Quanto mais viveu, mais duvidou. Examinando os homens, adivinhou muitas vezes que a coragem era a temeridade; a prudência, a covardia; a generosidade, a astúcia; a justiça, crime; a delicadeza, frivolidade; a probidade, organização; e, por uma singular fatalidade, percebeu que as pessoas verdadeiramente honestas, delicadas, justas, generosas, prudentes e corajosas não obtinham nenhuma consideração entre os homens. “Que tola palhaçada!”, disse consigo. “Não vem de um deus.” E assim renunciando a um mundo melhor, jamais se descobriu ao ouvir pronunciar um nome, e considerou os santos de pedra nas igrejas obras de arte. E compreendendo o mecanismo das sociedades humanas, nunca hostilizava demais os preconceitos, pois não era tão poderoso quanto o carrasco. Mas contornava as leis sociais com essa graça e esse espírito tão bem representados na sua cena com o senhor Domingo. Foi, com efeito, o tipo do Dom Juan, de Molière, do Fausto, de Goethe, do Manfredo de Byron, e do Melmoth, de Matu­rin. Grandes imagens traçadas pelos maiores gênios da Eu­ropa, e aos quais os acordes de Mozart não fariam tanta falta quanto a lira de Rossini, talvez! Imagens terríveis que o princípio do Mal, existente em cada homem, eterniza, e do qual algumas cópias se reencontram de século em século: quer esse tipo entre em entendimentos com os homens en­carnando-se em Mirabeau, quer se contente de agir em silên­cio, como Bonaparte, ou de sobrecarregar o universo de ironia, como o divino Rabelais; ou ainda que se ria dos seres em lugar de insultar as coisas, como o marechal de Richelieu; e, melhor, talvez, que moteje dos homens e das coisas, como o mais célebre dos nossos embaixadores. Mas o gênio profundo de dom Juan Belvidero resumiu antecipa­damente todos esses gênios. Caçoou de tudo. Sua vida era um sarcasmo que atingia homens, coisas, instituições, idéias. Quanto à eternidade, tinha conversado familiarmente uma meia hora com o papa Júlio II, e, no fim da conversação, disse-lhe, rindo: — Se é absolutamente necessário escolher, prefiro crer em Deus a crer no Diabo; o poder unido à bon­dade oferece sempre mais fontes de recursos do que tem o gênio do Mal.
—    Sim, mas Deus quer que se faça penitência neste mundo...
—    Então pensais sempre em vossas indulgências? - respondeu Belvidero. — Pois bem, tenho, para me arrepen­der das faltas da minha primeira vida, uma existência com­pleta em reserva.
—    Ah! se tu compreendes assim a velhice — exclamou o papa —, tu te arriscas a ser canonizado.
—    Depois da vossa elevação ao papado, pode-se crer em tudo.
E eles foram ver os operários ocupados em construir a imensa basílica consagrada a São Pedro.
—    São Pedro foi o homem de gênio que estabeleceu o nosso duplo poder — disse o papa a dom Juan; — merece esse monumento. Mas às vezes penso, à noite, que um di­lúvio passará a esponja sobre isso e será preciso recomeçar.
Dom Juan e o papa puseram-se a rir, tinham-se com­preendido. Um tolo teria ido no dia seguinte divertir-se com Júlio II, em casa de Rafael, ou na deliciosa Vila Madame; mas Belvidero foi vê-lo oficiar pontificalmente, a fim de se convencer de suas dúvidas. Em um debate, La Rovère pode­ria se desmentir e comentar o Apocalipse.
Entretanto, essa lenda não foi empreendida para for­necer materiais aos que quiserem escrever memórias sobre a vida de dom Juan; ela destina-se a provar à gente honesta que Belvidero não morreu no seu duelo com uma pedra, como querem fazer crer algumas litografias.
Quando dom Juan Belvidero atingiu a idade de sessenta anos veio se fixar na Espanha. Aí, nos seus dias de velhi­ce desposou uma jovem e sedutora andaluza. Mas, por cál­culo, não foi nem bom pai, nem bom esposo. Observara que nunca somos ternamente amados senão pelas mulheres com as quais absolutamente não nos importamos. A sra. Elvira, santamente criada por uma tia idosa, no interior da Andaluzia, num castelo a algumas léguas de San Lúcar, era toda devotamento e toda graça. Dom Juan adivinhou que essa moça seria mulher que combateria muito tempo uma paixão, antes de ceder; esperou assim poder conservá-la virtuosa até a sua morte. Foi uma brincadeira séria, uma partida de xa­drez que quis se reservar, para jogar em sua velhice.
Fortalecido por todas as faltas cometidas por seu pai Bartolomeu, dom Juan resolveu imolar as menores ações de sua velhice ao triunfo do drama que deveria se cumprir em seu leito de morte. Assim, a maior parte de suas riquezas permaneceu enfurnada nas caves do seu palácio em Ferrara, aonde ia raramente. Quanto à outra metade da fortuna, foi colocada em bens vitalícios, a fim de interessar na duração de sua vida sua mulher e seus filhos, espécie de safadeza que seu pai deveria ter feito; mas essa especulação de maquiave­lismo não lhe foi muito necessária. O jovem Filipe Belvidero, seu filho, tornou-se um espanhol tão conscienciosamente re­ligioso, quanto o pai era ímpio, em virtude, talvez, do pro­vérbio: De pai avarento, filho pródigo. O abade de San Lúcar foi escolhido por dom Juan para dirigir a consciência da duquesa de Belvidero e de Filipe. O eclesiástico era um santo homem, de belo talhe, admiravelmente proporcionado, com belos olhos negros, a cabeça de Tíbério, fatigada pelos jejuns, branca pelas macerações, e cotidianamente tentado, como são todos os solitários. O velho senhor esperava talvez poder matar um monge, antes de acabar seu primeiro turno de vida. Mas, ou porque o abade fosse tão forte quanto o próprio dom Juan podia ser, ou porque a sra. Elvira tivesse mais prudência ou virtude que a Espanha concede às mu­lheres, dom Juan foi constrangido a passar seus últimos dias como um velho pároco de aldeia, sem escândalo em casa. Por vezes, sentia prazer em encontrar o filho ou a mulher em falta nos seus deveres religiosos, e queria imperiosamente que eles executassem todas as obrigações impostas aos fiéis pela corte de Roma. Enfim, nunca era tão feliz como quando ouvia o galante abade de San Lúcar, a sra. Elvira e Filipe, ocupados em discutir um caso de consciência. Contudo, mal­grado os cuidados prodigiosos que o senhor dom Juan Belvi­dero dava à sua pessoa, os dias da decrepitude chegaram; com essa idade de dor, vieram os gritos de impotência, gritos tan­to mais dilacerantes quanto mais ricas eram as lembranças da sua fervente juventude e da sua voluptuosa maturidade. Esse homem, no qual o último grau da impertinência era levar os outros a crerem nas leis e nos princípios de que ele próprio zombava, adormecia à noite com um talvez! Aquele modelo do bom-tom, o duque vigoroso numa orgia, soberbo nas cortes, gracioso junto às mulheres, cujo coração tinha sido dobrado por ele, como um camponês dobra varas de vime, aquele homem de gênio tinha uma rinite teimosa, uma ciática importuna, uma gota brutal. Via os dentes abandoná-­lo como no fim de uma noitada as damas mais brancas, as quais bem enfeitadas, se vão, uma a uma, deixando o salão deserto e despojado. Finalmente, suas mãos ousadas treme­ram, as pernas esbeltas afrouxaram, e uma tarde a apoplexia lhe apertou o pescoço, com mãos recurvas e geladas. Desde esse dia fatal ele se tornou moroso e rígido. Acusava o de­votamento do filho e da mulher, pretendendo às vezes que seus cuidados comoventes e delicados não lhe eram tão ternamente prodigalizados senão porque tinha colocado toda a sua fortuna em rendas vitalícias. Elvira e Filipe derramavam então lágrimas amargas e redobravam de carícias junto ao malicioso velho, cuja voz enfraquecida se tornava afetuosa para dizer: — Meus amigos, minha querida mulher, vós me perdoais, não é? Atormento-vos um pouco. Ah! Grande Deus, por que te serves de mim para experimentar essas duas criaturas celestes? Eu, que devia ser sua alegria, sou a sua tortura.
Foi assim que os amarrou à cabeceira do seu leito, fa­zendo-os esquecer meses inteiros de impaciência e de cruel­dade por uma hora em que, para eles, recobrava os tesouros sempre novos de sua graça e de sua falsa ternura. Sistema paternal que lhe rendeu infinitamente mais que aquele de que tinha usado outrora o seu pai para com ele. Finalmente, a doença agravou-se tanto que, para pô-lo no leito, era pre­ciso manobrá-lo como um grande barco por entre um canal perigoso. Depois, chegou o dia da morte. Aquela brilhante e cética personagem, de quem somente a lucidez sobrevivia à mais espantosa de todas as destruições, viu-se entre um mé­dico e um confessor, suas duas antipatias. Mas foi jovial com eles. Não havia para ele uma luz cintilante atrás do véu do porvir? Sobre esse véu, de chumbo para os outros e diáfano para ele, as suaves, sedutoras delicias da juventude flanavam como sombras.
Foi numa bela noite de verão que dom Juan sentiu a aproximação da morte. O céu de Espanha era de uma admi­rável pureza, as laranjeiras perfumavam o ar, as estrelas des­prendiam vivas e frescas luminárias, a natureza parecia lhe dar penhores seguros da sua ressurreição, um filho piedoso e obediente o contemplava com amor e respeito. Cerca das onze horas, quis permanecer sozinho com aquele ente cân­dido.
—    Filipe! — disse-lhe, com voz tão terna e tão afe­tuosa, que o rapaz estremeceu e chorou de felicidade. Jamais esse pai inflexível tinha pronunciado assim um “Filipe!” — Ouve, meu filho — continuou o moribundo. — Sou um grande pecador, Por isso, pensei, durante toda a minha vida, em minha morte. Fui em outros tempos amigo de um gran­de papa, Júlio II. O ilustre pontífice temia que a excessiva irritação de meus sentidos me fizesse cometer algum pecado mortal, entre o momento em que eu expirasse e aquele em que tivesse recebido os santos óleos; fez-me presente de um frasco que contém a água santa, jorrada outrora de rochedos do deserto. Guardei o segredo dessa dilapidação do tesouro da Igreja, mas estou autorizado a revelar o seu mistério ao meu filho, in articulo mortis. Encontrarás o frasco na gaveta dessa mesa gótica, que nunca deixou a cabeceira da minha cama... O precioso cristal poderá servir-te ainda, meu bem-amado Filipe. Juras-me, pela tua eterna salvação, executar literalmente minhas ordens?
Filipe olhou para o pai. Dom Juan conhecia bastante a expressão dos sentimentos humanos para não morrer em paz, confiante naquele olhar, como seu pai havia morrido no desespero, com a expressão do seu.
—    Merecias outro pai — continuou dom Juan. — Te­nho a ousadia de confessar-te, meu filho, que, no momento em que o respeitável abade de San Lúcar me administrava o viático, eu pensava na incompatibilidade de dois poderes tão extensos quanto os do Diabo e de Deus...
—    Oh! Meu pai!
—    Eu me dizia que, quando Satanás fez as suas pazes, deveria, sob pena de ser um grande miserável, estipular o perdão de seus adeptos. Esse pensamento me persegue. Eu iria assim para o inferno, meu filho, se tu não cumprisses minhas vontades!
—    Oh! dizei-as depressa, meu pai!
—    Logo que eu tiver fechado os olhos — replicou dom Juan —, dentro de alguns minutos talvez, tu tomarás meu corpo, quente ainda, e o estenderás sobre uma mesa no meio deste quarto. Depois apagarás esse lume; o clarão das estre­las te bastará. Tu me despojarás das roupas; e enquanto re­citares padre-nossos e ave-marias, elevando tua alma a Deus, terás o cuidado de umedecer com esta água santa, primeiro, os meus olhos, meus lábios, toda a cabeça, depois, sucessi­vamente, os membros e o corpo; mas, meu caro filho a oni­potência de Deus é tão grande que será preciso não te es­pantares de nada!
Aqui, dom Juan, que sentiu chegar a morte, acrescen­tou com voz terrível:
—    Segura bem o frasco.
Depois, expirou docemente nos braços do filho, cujas lágrimas abundantes correram sobre sua face irônica e blas­fema.
Era cerca da meia-noite quando dom Filipe Belvidero colocou o cadáver de seu pai na mesa. Depois de lhe ter beijado a fronte ameaçadora e os cabelos grisalhos, apa­gou o lume. O suave clarão produzido pelo luar, cujos re­flexos curiosos iluminavam o campo, permitiu ao piedoso Filipe entrever indistintamente o corpo do pai como alguma coisa de branco no meio da sombra. O jovem embebeu o pano no líquido e, mergulhado na prece, umedeceu fielmen­te aquela cabeça sagrada, em meio a um profundo silêncio. Ouvia bem uns estremecimentos indescritíveis, mas atri­buía-os aos caprichos da brisa nos cimos das árvores. Quan­do tinha molhado o braço direito, sentiu o pescoço forte­mente agarrado por um braço jovem e vigoroso, o braço de seu pai! Deu um grito dilacerante e deixou cair o vidro, que se quebrou. O líquido se evaporou. Os criados do castelo acorreram, armados de tochas. Aquele grito os tinha apavo­rado e surpreendido, como a trombeta do Juízo Final teria abalado o universo. A multidão de gente, trêmula, deu com dom Filipe desfalecido, mas retido pelo braço poderoso do pai, que lhe apertava o pescoço. Depois, coisa sobrenatural, a assistência viu a cabeça de dom Juan tão jovem, tão bela, como a de Antínoo[NC2] ; uma cabeça de cabelos negros, olhos brilhantes, boca vermelha e que se agitava medonhamente, sem remover o esqueleto ao qual pertencia. Um velho ser­vidor gritou: “Milagre!”, e todos aqueles espanhóis repeti­ram: “Milagre!” Piedosa demais para admitir os mistérios da magia, a sra. Elvira mandou procurar o abade de San Lúcar.
Quando o prior contemplou com seus próprios olhos o milagre, resolveu aproveitar o caso, como homem de espírito como abade, que nada mais desejava se não aumentar os seus lucros. Declarando logo que o senhor dom Juan seria infalivelmente canonizado, indicou a cerimônia da apoteose no seu convento, que daquele dia em diante se chamaria, disse ele, San Juan de Lúcar. A essas palavras, a cabeça fez uma careta bastante chistosa.
O gosto dos espanhóis por essas espécies de solenida­de é tão conhecido, que não deve ser difícil crer nas mara­vilhas religiosas pelas quais o abade de San Lúcar celebrou a translação do bem-aventurado dom Juan Belvidero para sua igreja. Alguns dias depois da morte do ilustre senhor o milagre de sua imperfeita ressurreição estava tão difundi­do na aldeia, numa área de cinqüenta léguas ao redor de San Lúcar, que foi já uma comédia ver os curiosos pelos cami­nhos: chegavam de todos os lados, tangidos por um te-déum cantado à luz de tochas.
A antiga mesquita do convento de San Lúcar, maravi­lhoso edifício construído pelos mouros, e cujas colunas ouviam há três séculos o nome de Jesus Cristo, que substi­tuiu o de Alá, não pôde conter a multidão que acorrera para ver a cerimônia. Comprimidos como formigas, fidalgos com casacos de veludo e armados com suas boas espadas man­tinham-se de pé em torno dos pilares, sem encontrar lugar para dobrar os joelhos, que não se dobravam senão ali. Se­dutoras camponesas, cujo casaquinho desenhava as for­mas amorosas, davam o braço a velhos de cabelos brancos. Jovens de olhos de fogo se encontravam ao lado de velhas senhoras enfeitadas. Depois eram os casais frementes de ale­gria, noivas curiosas levadas por seus bem-amados; recém-­casados; meninos segurando-se tímidos pela mão.
Toda aquela gente achava-se rica de cores, brilhante de contrastes, carregada de flores, embelezada, fazendo um sua­ve tumulto no silêncio da noite.
As grandes portas da igreja se abriram. Os que chega­vam atrasados ficavam do lado de fora, observavam de lon­ge, pelos três portais abertos, uma cena de que as decorações vaporosas das nossas óperas não saberiam dar uma fraca idéia. Devotos e pecadores, aflitos por ganharem as boas graças de um novo santo, acendiam em sua honra milhares de círios na vasta igreja — chamas interessadas que deram aspectos mágicos ao monumento. As negras arcadas, as co­lunas e seus capitéis, as capelas profundas e brilhantes de ouro e prata, as galerias, os cortes sarracenos, os mais delicados traços daquela escultura delicada, delineavam-se àque­la luz superabundante, como figuras caprichosas que se formam num braseiro vermelho. Era um oceano de fogo, dominado no fundo da igreja pelo coro dourado, onde se elevava o altar-mor, cuja glória rivalizava com a do sol nas­cente. Com efeito, o esplendor das luminárias de ouro, dos candelabros de prata, estandartes, passamanes, santos e ex-votos, tudo empalidecia diante do caixão em que se encontrava dom Juan. O corpo do ímpio faiscava de pedrarias, de flores, de cristais, de diamantes, de ouro, de plumas tão brancas quanto as asas de um serafim, e substituía no altar um quadro de Cristo. Em torno dele brilhavam os numero­sos círios que lançavam aos ares ondas flamejantes.
O bom abade de San Lúcar, paramentado com os hábi­tos pontificais, tendo a mitra enriquecida de pedras precio­sas, a sobrepeliz de mangas estreitas, o bastão pastoral de ouro refestelava-se, rei do coro, numa poltrona de luxo imperial, no meio de todo o clero, composto de impassíveis velhos de cabelos prateados, revestidos de alvas finas, e que o cercavam, semelhante aos santos confessores que os pinto­res agrupam em torno do Eterno. O grão-cantor e os digni­tários do capítulo, ornamentados com as brilhantes insígnias de suas vaidades eclesiásticas, iam e vinham no seio de nu­vens formadas pelo incenso, parecidos com os astros que rolam no firmamento.
Quando chegou a hora do triunfo, os sinos despertaram o eco nas campinas e aquela imensa assembléia lançou a Deus o primeiro grito de louvores pelo qual começa o te­-déum. Grito sublime! Eram vozes puras e ligeiras, vozes de mulheres em êxtase, misturadas às vozes graves e fortes dos homens, milhares de vozes tão poderosas que o órgão não lhes dominou o conjunto, apesar do bramido de seus tubos. Somente as notas penetrantes da voz jovem dos meninos do coro e os tons quentes de alguns baixos suscitaram idéias graciosas, representaram a infância e a força, naquele admi­rável concerto de vozes humanas, confundidas num mesmo sentimento de amor.
—    Te Deum laudamus!
Do seio daquela catedral, negra de mulheres e de ho­mens ajoelhados, partiu esse canto, semelhante a uma luz que cintila de repente na noite, e o silêncio foi quebrado como que por um estrondo de trovão. As vozes subiram com as nuvens de incenso que lançavam véus diáfanos e azu­lados, sobre as fantásticas maravilhas da arquitetura. Tudo era riqueza, perfume, luz e melodia.
No instante em que essa música de amor e gratidão se lançou para o altar, dom Juan, polido demais para não agra­decer, espirituoso demais para não apreender a ironia, res­pondeu com um riso terrível e afetou uma atitude solene e altiva em seu caixão. Mas o Diabo, tendo-o feito pensar no perigo que corria de ser tomado por um homem comum, por um santo, um Bonifácio, um Pantaleão, perturbou aque­la melodia de amor com um urro, ao qual se juntaram as mil vozes do inferno. A terra bendizia, o céu amaldiçoava. A igreja tremeu sobre seus fundamentos antigos.
—    Te Deum laudamus! — dizia a assembléia.
—    Vão para o diabo, bestas, brutos que são! Deus! Deus! Carajos demonios[NC3] , animais, são todos uns estúpidos com o seu Deus velho!
E uma torrente de imprecações rolou como um regato de lavas ardentes, numa erupção do Vesúvio.
Deus sabaoth, sabaoth! — gritavam os cristãos.
—  Insultais a majestade do inferno! — respondeu então dom Juan, que rangia os dentes.
Logo o braço vivo pôde passar por cima do caixão e ameaçou o povo com gestos impregnados de desespero e ironia.
— O santo nos abençoa! — disseram as velhas, as crianças e os noivos, gente crédula.
Eis como somos enganados muitas vezes em nossas ado­rações. O homem superior zomba dos que o cumprimentam e cumprimenta algumas vezes aqueles de quem zomba no fundo do coração.
No momento em que o abade, prosternado diante do altar, cantava: “Sancte Johanes, ora pro nobis!”, ouviu dis­tintamente: — O coglione! *[NC4] 
— Que se passa lá em cima? — exclamou o vice-prior, vendo o caixão se mover.
— O santo pinta o diabo — respondeu o abade.
Então, aquela cabeça viva se desligou violentamente do corpo que não vivia mais e caiu sobre o crânio amarelo do oficiante.
— Lembra-te da sra. Elvira: — gritou a cabeça, devo­rando a do abade.
Este último soltou um grito medonho, que perturbou a cerimônia. Todos os sacerdotes acorreram e cercaram seu soberano.
— Imbecil, diz agora que há um Deus! — gritou a voz, no momento em que o abade, mordido no cérebro, expirava.


Paris, outubro de 1830


 [NC1] Em italiano, no original: espadachins assalariados. (N. da T.)

 [NC2] Favorito do imperador Adriano, homem de grande beleza. (N. da T.)

 [NC3] Em espanhol no original. (N. da T.)

 [NC4] Em italiano no original. (N. da T.)

In : BALZAC, Honoré de. Os melhores contos de Balzac. Círculo do Livro.

Para saber mais sobre Balzac aqui e aqui 

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A carta roubada, Edgar Allan Poe


Nil  sapientiae odiosus acumine nimio.
Sêneca
 

Em Paris, justamente depois de escura e tormentosa noite, no outono do ano 18..., desfrutava eu do duplo luxo da meditação e de um cachimbo feito de espuma-do-mar, em companhia de meu amigo Auguste Dupin, em sua pequena biblioteca, ou gabinete de leitura, situado no ter­ceiro andar da Rua Dunôt, 33, Faubourg Saint-Germain. Durante uma hora, pelo menos, mantínhamos profundo silêncio; cada um de nós, aos olhos de algum observador casual, teria parecido intensa e exclusivamente ocupado com as volutas de fumaça que tornavam densa a atmosfera do aposento. Quanto a mim, no entanto, discutia mentalmente certos tópicos que haviam constituído o assunto da conversa entre nós na primeira parte da noite. Retiro-me ao caso da Rua Morgue e ao mistério que envolvia o assassínio de Marie Rogêt. Pareceu-me, pois, quase que uma coincidência, quando a porta de nosso apartamento se abriu e entrou o nosso velho conhecido, Monsieur G..., delegado de polícia de Paris.
Recebemo-lo com cordialidade, pois havia nele tanto de desprezível como de divertido, e não o víamos havia já vários anos. Tínhamos estado sentados no escuro e, a entrada do visitante, Dupin se ergueu para acender a luz, mas sentou-se de novo sem o fazer, depois que G... nos disse que nos visitava para consultar-nos, ou melhor, para pedir a opinião de meu amigo sobre alguns casos oficiais que lhe haviam causado grandes transtornos.
         — Se se trata de um caso que requer reflexão — disse Dupin —, desistindo de acender a mecha, será melhor examinado no escuro.
    — Esta é outra de suas estranhas idéias — comentou o delegado, que tinha o costume de 'chamar "estranhas" to­das as coisas que estavam além de sua compreensão e que, desse modo, vivia em meio de uma legião inteira de “estranhezas”.
— Exatamente — disse Dupiu, enquanto oferecia um cachimbo ao visitante e empurrava para junto dele uma confortável poltrona.
    — E qual é agora a dificuldade? — perguntei. — Espero que não seja nada que se refira a assassínios.
    — Oh, não! Nada disso! Trata-se, na verdade, de um caso muito simples, e não tenha dúvida de que podemos resolvê-lo satisfatoriamente. Mas, depois, pensei que Du­pin talvez gostaria de conhecer alguns de seus pormeno­res, que são bastante estranhos.
    — Um caso simples e estranho — comentou Dupin.
— Sim, realmente; mas por outro lado, não é nem uma coisa nem outra. O fato é que todos nós ficamos muito intrigados, pois, embora tão simples, o caso escapa intei­ramente a nossa compreensão.
    — Talvez seja a sua própria simplicidade que os deso­rienta — disse o meu amigo.
    — Ora, que tolice — exclamou o delegado, rindo cor­dialmente.
    — Talvez o mistério seja um pouco simples demais — disse Dupin.
    — Oh, Deus do céu! Quem já ouviu tal coisa?
    — Um pouco evidente demais.
O  delegado de polícia prorrompeu em sonora gargalha­da, divertindo-se a valer:
    — Oh, Dupin, você ainda acaba por me matar de riso!
    — E qual é, afinal de contas, o caso em apreço? — per­guntei.
    — Pois eu lhes direi — respondeu o delegado, refeste­lando-se na poltrona, enquanto tirava longa e meditativa baforada do cachimbo. — Direi tudo em poucas palavras; mas, antes de começar, permitam-me recomendar que este caso exige o maior sigilo. Perderia, provavelmente, o lugar que hoje ocupo, se soubessem que eu o confiei a alguém.
    — Continue — disse eu.
   Ou não diga nada — acrescentou Dupin.
    — Bem. Recebi informações pessoais, de fonte muito elevada, de que certo documento da máxima importância foi roubado dos aposentos reais. Sabe-se quem foi a pessoa que o roubou. Quanto a isso, não há a menor dúvida; viram-na apoderar-se dele. Sabe-se, também, que o docu­mento continua em poder da referida pessoa.
         —  Como se sabe disso? — indagou Dupin.
    — É coisa que se deduz claramente — respondeu o delegado — pela natureza de tal documento e pelo fato de não terem surgido certas conseqüências que surgiriam incontinente, se o documento não estivesse ainda em poder do ladrão, isto é, se já houvesse sido utilizado com o fim que este último se propõe.
    — Seja um pouco mais explícito — pedi.
    — Bem, atrevo-me a dizer que esse documento dá a quem o possua um certo poder, num meio em que tal poder é imensamente valioso.
O  delegado apreciava muito as tiradas diplomáticas.
    — Ainda não entendo bem — disse Dupin.
    — Não? Bem. A exibição desse documento a uma ter­ceira pessoa, cujo nome não mencionarei, comprometeria a honra de uma personalidade da mais alta posição, e tal fato concede à pessoa que possui o documento ascendên­cia sobre essa personalidade ilustre, cuja honra e tranqüi­lidade se acham, assim, ameaçadas.
    — Mas essa ascendência — intervim — depende de que o ladrão saiba que a pessoa roubada o conhece. Quem se atreveria.
     — O ladrão — disse G... — é o Ministro D..., que se atreve a tudo, tanto o que é digno como o que é indig­no de um homem. O roubo foi cometido de modo não só engenhoso como ousado. O documento em questão... uma carta, para sermos francos, foi recebida pela personalidade roubada quando esta se encontrava a sós em seus aposen­tos. Quando a lia, foi subitamente interrompida pela entrada de outra personalidade de elevada posição, de quem desejava particularmente ocultar a carta. Após tentar às pressas, e em vão, metê-la numa gaveta, foi obrigada a  colocá-la, aberta como estava, sobre uma mesa. O sobrescrito, porém, estava em cima e o conteúdo, por conseguin­te, ficou resguardado. Nesse momento, entra o Ministro D... Seus olhos de lince percebem imediatamente a carta, e ele reconhece a letra do sobrescrito, observa a confusão da destinatária e penetra em seu segredo. Depois de tratar de alguns assuntos, na sua maneira apressada de sempre, tira do bolso uma carta parecida com a outra em questão, abre-a, finge lê-la e, depois, coloca-a bem ao lado da primeira. Torna a conversar, durante uns quinze minutos, sobre assuntos públicos. Por fim, ao retirar-se, tira de cima da mesa a carta que não lhe pertencia. Seu verdadeiro dono viu tudo, certamente, mas não ousou chamar-lhe a atenção em presença da terceira personagem, que se achava ao seu lado. O ministro retirou-se, deixando sua carta — uma carta sem importância — sobre a mesa.
          — Aí tem você — disse-me Dupin — exatamente o que seria necessário para tornar completa tal ascendência: o ladrão sabe que a pessoa roubada o conhece.
          — Sim — confirmou o delegado — e o poder conseguido dessa maneira tem sido empregado, há vários meses, para fins políticos, até um ponto muito perigoso. A pessoa roubada esta cada dia mais convencida de que é ne­cessário reaver a carta. Mas isso, por certo, não pode ser feito abertamente. Por fim, levada ao desespero, encarregou-me dessa tarefa.­
    — Não lhe teria sido possível, creio eu — disse Dupin, em meio a uma perfeita espiral de fumaça —, escolher ou sequer imaginar um agente mais sagaz.
    — Você me lisonjeia — respondeu o delegado —, mas é possível que haja pensado mais ou menos isso.
    — Está claro, como acaba de observar — disse eu —, que a carta se encontra ainda em poder do ministro, pois é a posse da carta, e não qualquer emprego da mesma, que lhe confere poder. Se ele a usar, o poder se dissipa.
    — Certo — concordou G... — e foi baseado nessa convicção que principiei a agir. Meu primeiro cuidado foi realizar uma pesquisa completa no hotel em que mora o ministro. A principal dificuldade reside no fato de ser ne­cessário fazer tal investigação sem que ele saiba.  Além disso preveniram-me do perigo, caso ele venha a suspeitar de nosso propósito.
    — Mas — disse eu — o senhor está perfeitamente a par dessas investigações. A polícia parisiense já fez isso muitas vezes, anteriormente.
     — É verdade. Por essa razão, não desesperei. Os hábi­tos do ministro me proporcionam, sobretudo, uma grande vantagem. Com freqüência, passa a noite toda fora de casa. Seus criados não são numerosos. Dormem longe do apar­tamento de seu amo e, como quase todos são napolitanos, não é difícil fazer com que se embriaguem. Como sabe, tenho chaves que podem abrir qualquer aposento ou gabi­nete em Paris. Durante três meses, não houve uma noite sequer em que eu não me empenhasse, pessoalmente em esquadrinhar o Hotel D... Minha honra está em jogo e, para mencionar um grande segredo, a recompensa é enor­me. De modo que não abandonarei as pesquisas enquanto não me convencer inteiramente de que o ladrão é mais astuto do que eu. Creio haver investigado todos os cantos e esconderijos em que o papel pudesse estar oculto.
    — Mas não seria possível — lembrei — que, embora a carta possa estar em poder do ministro, como indiscuti­velmente está, ele a tenha escondido em outro lugar que sua própria casa?
    — É pouco provável — respondeu Dupin. - A si­tuação atual, particularíssima, dos assuntos da corte e principalmente as intrigas em que, como se sabe, D... anda envolvido, fazem da eficácia imediata do documen­to — da possibilidade de ser apresentado a qualquer mo­mento — um ponto quase tão importante quanto a sua posse.
    — A possibilidade de ser apresentado? — perguntei.
    — O que vale dizer, de ser destruído — disse Dupin.
    — É certo — observei. — Não há dúvida de que o documento se encontra nos aposentos do ministro. Quan­to a estar consigo próprio, guardado em seus bolsos, é coisa que podemos considerar como fora da questão.
    — De acordo — disse o delegado. Por duas vezes, já fiz com que fosse revistado, sob minhas próprias vistas, por batedores de carteiras.
    — Podia ter evitado todo esse trabalho — comentou Dupin. — D..., creio eu, não é inteiramente idiota e, assim, deve ter previsto, como coisa corriqueira, essas “revistas”.
    — Não é inteiramente tolo — disse G... —, mas é poeta, o que o coloca não muito distante de um tolo.
          — Certo — assentiu Dupin, após longa e pensativa ba­forada de seu cachimbo —, embora eu também seja cul­pado de certos versos.
    — Que tal se nos contasse, com pormenores. como se processou a busca? — sugeri.
    — Pois bem. Examinamos, demoradamente, todos os cantos. Tenho longa experiência dessas coisas. Vasculha­mos o edifício inteiro, quarto por quarto, dedicando as noites de toda uma semana a cada um deles. Examinamos, primeiro, os móveis de cada aposento. Abrimos todas as gavetas possíveis, e presumo que os senhores saibam que, para um agente de polícia devidamente habilitado, não existem gavetas secretas. Seria um bobalhão aquele que permitisse que uma gaveta "secreta" escapasse à sua obser­vação numa pesquisa como essa. A coisa é demasiado sim­ples. Há um certo tamanho — um certo espaço — que se deve levar em conta em cada escrivaninha. Além disso, dispomos de regras precisas. Nem a qüinquagésima parte de uma linha nos passaria despercebida. Depois das mesas de trabalho, examinamos as cadeiras. As almofadas foram submetidas ao teste das agulhas. que os senhores já me viram empregar. Removemos a parte superior das mesas.
    — Para quê?
    — As vezes, a parte superior de uma mesa, ou de outro móvel semelhante, é removida pela pessoa que deseja ocultar um objeto; depois, a perna é escavada, o objeto depositado dentro da cavidade e a parte superior recolocada em seu lugar. Os pés e a parte superior das colunas das camas são utilizados para o mesmo fim.
         — Mas não se poderia descobrir a parte oca por meio de som? — perguntei.
    — De modo algum, se quando o objeto lá colocado for envolto por algodão. Além disso, em nosso caso, somos obrigados a agir sem fazer barulho.
     — Mas o senhor não poderia ter removido. . . não pode­ria ter examinado, peça por peça, todos os móveis em que teria sido possível ocultar alguma coisa da maneira a que se referiu. Uma carta pode ser transformada em minúscula espiral, não muito diferente, em forma e em volume, de uma agulha grande de costura e, desse modo, pode ser introdu­zida na travessa de uma cadeira, por exemplo. Natural­mente, o senhor não desmontou todas as cadeiras, não é verdade?
     — Claro que não. Mas fizemos melhor: examinamos as travessas de todas as cadeiras existentes no hotel e, tam­bém, as juntas de toda a espécie de móveis. Fizemo-lo com a ajuda de poderoso microscópio. Se houvesse sinais de alterações recentes, não teríamos deixado de notar ime­diatamente. Um simples grão de pó de verruma, por exem­plo, teria sido tão evidente como uma maçã. Qualquer alteração na cola — qualquer coisa pouco comum nas junturas — seria o bastante para chamar-nos a atenção.
     — Presumo que examinaram os espelhos, entre as tá­buas e os vidros, bem como as camas, as roupas de cama, as cortinas e os tapetes.
     — Naturalmente! E, depois de examinar desse modo, com a máxima minuciosidade, todos os móveis, passamos a examinar a própria casa. Dividimos toda a sua superfí­cie em compartimentos, que eram por nós numerados, a fim de que nenhum pudesse ser esquecido. Depois, vascu­lhamos os aposentos palmo a palmo, inclusive as duas casas contíguas. E isso com a ajuda do microscópio, como antes.
     — As duas casas contíguas?! — exclamei. — Devem ter tido muito trabalho!
    — Tivemos. Mas a recompensa oferecida é, como já disse, muito grande.
    — Incluíram também os terrenos dessas casas?
     — Todos os terrenos são revestidos de tijolos. Deram-nos, relativamente, pouco trabalho. Examinamos o musgo existente entre os tijolos, verificamos que não havia ne­nhuma alteração.
    — Naturalmente, olharam também os papéis de D. . . E os livros da biblioteca?
    — Sem dúvida. Abrimos todos os pacotes e embrulhos, e não só abrimos todos os volumes, mas os folheamos pá­gina por página, sem que nos contentássemos com uma simples sacudida, como é hábito entre alguns de nossos policiais. Medimos também a espessura de cada encader­nação, submetendo cada uma delas ao mais escrupuloso exame microscópico. Se qualquer encadernação apresen­tasse sinais de que havia sofrido alteração recente, tal fato não nos passaria despercebido. Quanto a uns cinco ou seis volumes, recém-chegados das mãos do encadernador, fo­ram por nós cuidadosamente examinados, em sentido lon­gitudinal, por meio de agulha.
     — Verificaram os assoalhos, embaixo dos tapetes?
     — Sem dúvida. Tiramos todos os tapetes e examinamos as tábuas do assoalho com o microscópio.
    — E o papel das paredes?
    — Também.
    — Deram uma busca no porão?
— Demos.
    — Então — disse eu — os senhores se enganaram, pois a carta não está na casa, como o senhor supõe.
     — Temo que o senhor tenha razão quanto a isso, con­cordou o delegado. E agora Dupin, que é que aconselharia fazer?
    Uma nova e completa investigação na casa.
— Isso é inteiramente inútil — replicou G. . . — Não estou tão certo de que respiro como de que a carta não está no hotel.
    — Não tenho melhor conselho para dar-lhe — disse Dupin. — O senhor, naturalmente, possui uma descrição precisa da carta, não e assim?
    — Certamente!
E, aqui, tirando do bolso um memorando, o delegado de polícia pôs-se a ler, em voz alta, uma descrição minuciosa do aspecto interno e, principalmente, externo do docu­mento roubado. Logo depois de terminar a leitura, partiu muito mais deprimido do que eu jamais o vira antes.
Decorrido cerca de um mês, fez-nos outra visita, e encontrou-nos entregues à mesma ocupação que na vez ante­rior. Apanhou um cachimbo e uma poltrona e passou a conversar sobre assuntos corriqueiros. Por fim, perguntei:
     — Então, Monsieur G. . . , que nos diz da carta rou­bada? Suponho que se convenceu, afinal, de que não é coisa simples ser mais astuto que o ministro.
     — Que o diabo carregue o ministro! — exclamou.
 Sim, realizei, apesar de tudo, um novo exame, como Dupin sugeriu. Mas trabalho perdido, como eu sabia que seria.
     — Qual foi a recompensa oferecida, a que se referiu? — indagou Dupin.
     — Ora, uma recompensa muito grande . . . muito generosa. . . Mas não me agrada dizer quanto, precisamente. Direi, no entanto, que não me importaria de dar, de meu cheque cinqüenta mil francos a quem conseguisse obter essa carta. A verdade é que ela se torna, a cada dia que passa, mais importante. . . e a recompensa foi, ultimamen­te, dobrada. Mas, mesmo que fosse triplicada, eu não poderia fazer mais do que já fiz.
     — Pois sim — disse Dupin, arrastando as palavras, entre as baforadas de seu cachimbo de espuma —, real­mente.   Parece-me. . . no entanto. . . G. . . que não se esforçou ao máximo quanto a este assunto. . . Creio que poderia fazer um pouco mais, bem?
    —  Como? De que maneira?
    — Ora (baforada), poderia (baforada) fazer uma consulta sobre este assunto, hein? (baforada). Lembra-se da história que se conta a respeito de Abernethy?

     — Não. Que vá para o diabo Abernethy!
     — Sim, que vá para o diabo e seja bem recebido! Mas, certa vez, um avarento rico concebeu a idéia de obter de graça uma consulta de Ahernethy. Com tal fim, durante uma conversa entre um grupo de amigos, insinuou o seu caso ao médico, como se se tratasse do caso de um indi­víduo imaginário.
    —  “Suponhamos” — disse o avaro — que seus sinto­mas sejam tais e tais. Nesse caso, que é que o doutor lhe aconselharia tomar?"
    — ”Tomar! Aconselharia, claro, que tomasse um conselho."
    — Mas —  disse o delegado, um tanto desconcertado — estou inteiramente disposto a ouvir um conselho e a pagar por ele. Daria, realmente, cinqüenta mil francos a quem quer que me ajudasse nesse assunto.
     — Nesse caso —  respondeu Dupin, abrindo uma gaveta e retirando um livro de cheques —  pode encher um cheque nessa quantia. Quando o houver assinado, eu lhe entregarei
a carta.
Fiquei perplexo. O delegado parecia fulminado por um raio. Durante alguns minutos, permaneceu mudo e imóvel, olhando, incrédulo e boquiaberto, o meu amigo, com os olhos quase a saltar-lhe das órbitas. Depois, parecendo voltar, de certo modo, a si, apanhou uma caneta e, após várias pausas e olhares vagos, preencheu, finalmente, um cheque de cinqüenta mil francos, entregando-o, por cima da mesa, a Dupin. Este o examinou cuidadosamente e o colocou na carteira; depois, abrindo uma escrivaninha, tirou dela uma carta e entregou-a ao delegado de polícia. O funcionário apanhou-a tomado como que de um espasmo de alegria. abriu-a com mãos trêmulas, lançou rápido olhar ao seu conteúdo e, depois, agarrando a porta e lutando por abri-la, precipitou-se, por fim, sem a menor cerimônia, para fora do apartamento e da casa, sem proferir uma única palavra desde o momento em que Dupin lhe pediu para preencher o cheque.
Depois de sua partida, meu amigo entrou em algumas explicações.
    — A polícia parisiense —  disse ele —  é extremamente hábil á sua maneira. Seus agentes são perseverantes, enge­nhosos, astutos e perfeitamente versados nos conhecimentos que seus deveres parecem exigir de modo especial. Assim, quando G . . . nos contou, pormenorizadamente, a maneira pela qual realizou suas pesquisas no Hotel D . . ., não tive dúvida de que efetuara uma investigação satisfatória . . . até o ponto a que chegou o seu trabalho.
    — Até o ponto a que chegou o seu trabalho? — per­guntei.
    — Sim — respondeu Dupin. — As medidas adotadas não foram apenas as melhores que poderiam ser tomadas, mas realizadas com absoluta perfeição. Se a carta estivesse depositada dentro do raio de suas investigações, esses rapazes, sem dúvida, a teriam encontrado.
Ri, simplesmente — mas ele parecia haver dito tudo aquilo com a máxima seriedade.
     — As medidas, pois — prosseguiu —, eram boas em seu gênero, e foram bem executadas: seu defeito residia em serem inaplicáveis ao caso e ao homem em questão. Um certo conjunto de recursos altamente engenhosos é, para o delegado, uma espécie de leito de Procusto, ao qual procura adaptar à força todos os seus planos. Mas, no caso em apreço, cometeu uma série de erros, por ser dema­siado profundo ou demasiado superficial, e muitos colegiais raciocinam melhor do que ele. Conheci um garotinho de oito anos cujo êxito como adivinhador, no jogo de "par ou ímpar", despertava a admiração de todos. Este jogo é simples e se joga com bolinhas de vidro. Um dos partici­pantes fecha na mão algumas bolinhas e pergunta ao outro se o número é par ou ímpar. Se o companheiro acerta, ganha uma bolinha; se erra, perde uma. O menino a que me refiro ganhou todas as bolinhas de vidro da escola. Natu­ralmente, tinha um sistema de adivinhação que consistia na simples observação e no cálculo da astúcia de seus opo­nentes. Suponhamos, por exemplo, que seu adversário fosse um bobalhão que, fechando a mão, lhe perguntasse: "Par ou ímpar?" Nosso garoto responderia "ímpar", e perderia; mas, na segunda vez, ganharia, pois diria com os seus botões: "Este bobalhão tirou par na primeira vez, e sua astúcia é apenas suficiente para que apresente um número ímpar na segunda vez. Direi, pois, ímpar". Diz ímpar e ganha. Ora, com um simplório um pouco menos tolo que o primeiro, ele teria raciocinado assim: "Este sujeito viu que, na primeira vez, eu disse ímpar e, na segunda, proporá a si mesmo, levado por um impulso a variar de ímpar para par, como fez o primeiro simplório; mas, pensando melhor, acha que essa variação é demasiado simples, e, finalmente, resolve-se a favor do par, como antes. Eu, por conseguinte, direi par”. E diz par, e ganha. Pois bem. Esse sistema de raciocínio de nosso colegial, que seus companheiros chamavam sorte, o que era, em última análise?
          — Simplesmente — respondi — uma identificação do intelecto do nosso raciocinador com o do seu oponente.
          — De fato — assentiu Dupin — e, quando perguntei ao menino de que  modo efetuava essa perfeita identificação, na qual residia o teu êxito, recebi a seguinte resposta:
"Quando quero saber até que ponto alguém é inteligente, estúpido, bom ou mau, ou quais são os seus pensamentos no momento, modelo a expressão de meu rosto, tão exata­mente quanto possível, de acordo com a expressão da refe­rida pessoa e, depois, espero para ver quais os sentimentos ou pensamentos que surgem em meu cérebro ou em meu coração, para combinar ou corresponder à expressão”. Essa resposta do pequeno colegial supera em muito toda a
profundidade espúria atribuída a Rochefoucauld, La Bou­give, Maquiavel e Campanella.
          — E a identificação — acrescentei — do intelecto do raciocinador com o de seu oponente depende, se é que o compreendo bem, da exatidão com que o intelecto deste último é medido.
          — Em sua avaliação prática, depende disso — confir­mou Dupin. — E, se o delegado e toda a sua corte têm cometido tantos enganos, isso se deve, primeiro, a uma falha nessa identificação e, segundo, a uma apreciação inexata, ou melhor, a uma não apreciação da inteligência daqueles com quem se metem. Consideram engenhosas apenas as suas próprias idéias e, ao procurar alguma coisa que se ache escondida, não pensam senão nos meios que eles próprios teriam empregado para escondê-la. Estão certos apenas num ponto: naquele em que sua engenhosidade representa fielmente a da massa; mas, quando a astúcia do mal-feitor é diferente da deles, o malfeitor, naturalmente, os engana. Isso sempre acontece quando a astúcia deste último está acima da deles e, muito freqüentemente, quando está abaixo. Não variam seu sistema de investigação; na melhor das hipóteses, quando são instigados por algum caso insó­lito, ou por alguma recompensa extraordinária, ampliam ou exageram os seus modos de agir habituais, sem que se afastem, no entanto, de seus princípios. No caso de D. . ., por exemplo, que fizeram para mudar sua maneira de agir? Que são todas essas perfurações, essas buscas, essas sonda­gens, esses exames de microscópio, essa divisão da superfície do edifício em polegadas quadradas, devidamente ano­tadas? Que é tudo isso senão exagero na aplicação de um desses princípios de investigação baseados sobre uma ordem de idéias referentes à esperteza humana, à qual o delegado se habituou durante os longos anos de exercício de suas funções? Não vê você que ele considera como coisa assente o fato de que todos os homens que procuram esconder uma carta utilizam, se não precisamente um orifício feito a verruma na perna de uma cadeira, pelo menos alguma cavidade, algum canto escuro sugerido pela mesma ordem de idéias que levaria um homem a furar a perna de uma cadeira? E não vê também que tais esconderijos tão re­cherchés só são empregados em ocasiões ordinárias e por inteligências comuns? Porque, em todos os casos de objetos escondidos, essa maneira recherché de ocultar-se um objeto é, desde o primeiro momento, presumível e presumida — e, assim, sua descoberta não depende, de modo algum, da perspicácia, mas sim do simples cuidado, da paciência e da determinação dos que procuram. Mas, quando se trata de um caso importante — ou de um caso que, pela recom­pensa oferecida, seja assim encarado pela polícia — jamais essas qualidades deixaram de ser postas em ação. Você compreenderá, agora, o que eu queria dizer ao afirmar que, se a carta roubada tivesse sido escondida dentro do raio de investigação do nosso delegado — ou, em outras palavras, se o princípio inspirador estivesse compreendido nos princípios do delegado —, sua descoberta seria uma questão inteiramente fora de dúvida. Este funcionário, porém, se enganou por completo, e a fonte remota de seu fracasso reside na suposição de que o ministro é um idiota, pois adquiriu renome de poeta. Segundo o delegado, todos os poetas são idiotas — e, neste caso, ele é apenas culpado de uma non distributio medii, ao inferir que todos os poetas são idiotas.
     — Mas ele é realmente poeta? — perguntei. — Sei que são dois irmãos, e que ambos adquiriram renome nas letras. O ministro, creio eu, escreveu eruditamente sobre o cálculo diferencial. É um matemático, e não um poeta.
     — Você está enganado. Conheço-o bem. E ambas as coisas. Como poeta e matemático, raciocinaria bem; como mero matemático, não raciocinaria de modo algum, e ficaria, assim, à mercê do delegado.
     — Você me surpreende — respondi — com essas opi­niões, que têm sido desmentidas pela voz do mundo. Natu­ralmente, não quererá destruir, de um golpe, idéias ama­durecidas durante tantos séculos. A razão matemática é há muito considerada como a razão par excellence.
    — “Il y a à parier” — replicou Dupin, citando Cham­fort — “que toute idée publique, toute convention reçue, est une sottise, car elle a convenu au plus grande nombre.” Os matemáticos, concordo, fizeram tudo o que lhes foi possível para propagar o erro popular a que você alude, e que, por ter sido promulgado como verdade, não deixa de ser erro. Como uma arte digna de melhor causa, ensina­ram-nos a aplicar o termo "análise" às operações algébri­cas. Os franceses são os culpados originários desse engano particular, mas, se um termo possui alguma importância — se as palavras derivam seu valor de sua aplicabilidade —, então análise poderá significar algebra, do mesmo modo que, em latim, ambitus significa ambição, religio, religião, ou homines honesti um grupo de homens honrados.
     — Vejo que você vai entrar em choque com alguns algebristas de Paris — disse-lhe eu. — Mas prossiga.
    — Impugno a validez e, por conseguinte, o valor de uma razão cultivada por meio de qualquer forma especial que não seja a lógica abstrata. Impugno, de modo parti­cular, o raciocínio produzido pelo estudo das matemáticas. As matemáticas são a ciência da forma e da quantidade; o raciocínio matemático não é mais do que a simples lógica aplicada à observação da forma e da quantidade. O grande erro consiste em supor-se que até mesmo as verdades daquilo que se chama álgebra pura são verdades abstratas ou gerais. E esse erro é tão grande, que fico perplexo diante da unanimidade com que foi recebido. Os axiomas matemáticos não são axiomas de uma verdade geral. O que é verdade com respeito à relação — de forma ou quantidade — é, com freqüência grandemente falso quanto ao que respeita à moral, por exemplo. Nesta última ciência, não é, com freqüência, verdade que a soma das partes seja igual ao todo. Na química, também falha o axioma. Na apreciação da força motriz, também falha, visto que dois motores, cada qual de determinada potência, não possuem necessariamente, quando associados, uma potência igual à soma de suas duas potências tornadas separadamente. Há numerosas outras verdades matemáticas que são somente verdades dentro dos limites da relação. Mas o matemático argumenta, por hábito, partindo de suas verdades finitas, como se estas fossem de uma aplicabili­dade absoluta e geral — como o mundo, na verdade, ima­gina que sejam. Bryant, em sua eruditíssima Mitologia, refere-se a uma fonte análoga de erro, ao dizer que, "embora ninguém acredite nas fábulas do paganismo, nós, com freqüência, esquecemos isso, até o ponto de fazer inferên­cia partindo delas, como se fossem realidades vivas". Entre os algebristas, porém, que são, também eles, pagãos as "fábulas pagãs" merecem crédito, e tais inferências são feitas não tanto devido a lapsos de memória, mas devido a um incompreensível transtorno em seus cérebros. Em suma, não encontrei jamais um matemático puro cm quem pudesse ter confiança, fora de suas raízes e de suas equa­ções; não conheci um único sequer que não tivesse como artigo de fé que x2 + px é absoluta e incondicionalmente igual a q. Se quiser fazer uma experiência, diga a um desses senhores que você acredita que possa haver casos em que x2+ px não seja absolutamente igual a q, e, logo depois de ter-lhe feito compreender o que você quer dizer com isso, fuja de suas vistas o mais rapidamente possível, pois ele, sem dúvida, procurará dar-lhe uma surra.
    — O que quero dizer — continuou Dupin, enquanto eu não fazia senão rir-me destas últimas observações — é que, se o ministro não fosse mais do que um matemático, o delegado de polícia não teria tido necessidade de dar-me este cheque. Eu o conhecia, porém, como matemático e poeta, e adaptei a essa sua capacidade as medidas por mim tomadas, levando em conta as circunstâncias em que ele se achava colocado. Conhecia-o, também, não só como homem da corte, mas, ainda, como intrigante ousado. Tal homem, pensei, não poderia ignorar a maneira habitual de agir da polícia. Devia ter previsto — e os acontecimentos demonstraram que, de fato, previra — os assédios disfar­çados a que estaria sujeito. Devia também ter previsto, refleti, as investigações secretas efetuadas em seu aparta­mento. Suas freqüentes ausências de casa, à noite, conside­radas pelo delegado de polícia como coisa que viria con­tribuir, sem dúvida, para o êxito de sua empresa, eu as encarei apenas como astúcia, para que a polícia tivesse oportunidade de realizar urna busca completa em seu apar­tamento e convencer-se, o mais cedo possível, como de fato aconteceu, de que a carta não estava lá. Pareceu-me, tam­bém, que toda essa série de idéias referentes aos princípios invariáveis da ação policial nos casos de objetos escondidos, e que tive certa dificuldade, há pouco, para explicar-lhe, pareceu-me que toda essa série de idéias deveria, neces­sariamente, ter passado pelo espírito do ministro. Isso o levaria, imperativamente. a desdenhar todos os esconderi­jos habituais. Não poderia ser tão ingênuo que deixasse de ver que os lugares mais intrincados e remotos de seu hotel seriam tão visíveis como um armário para os olhos, as pesquisas, as verrumas e os microscópios do delegado. Percebi, em suma, que ele seria levado, instintivamente, a agir com simplicidade, se não fosse conduzido a isso por simples deliberação. Você talvez se recorde com que gar­galhadas desesperadas o delegado acolheu, em nossa pri­meira entrevista, a minha sugestão de que era bem possível que esse mistério o perturbasse tanto devido ao fato de ser demasiado evidente.
    — Sim, lembro-me bem de como ele se divertiu. Pensei mesmo que ele iria ter convulsões de tanto rir.
    — O mundo material — prosseguiu Dupin — contém muitas analogias estritas com o imaterial e, desse modo, um certo matiz de verdade foi dado ao dogma retórico, a fim de que a metáfora, ou símile, pudesse dar vigor a um argumento, bem como embelezar uma descrição. O princípio da vis inertiae, por exemplo, parece ser idêntico tanto na física como na metafísica. Não é menos certo quanto ao que se refere à primeira, que um corpo volu­moso se põe em movimento com mais dificuldade do que um pequeno, e que o seu momentum subseqüente está em proporção com essa dificuldade, e que, quanto à segunda, os intelectos de maior capacidade, conquanto mais poten­tes, mais constantes e mais acidentados em seus movimen­tos do que os de grau inferior, são, não obstante, mais lentos, mais embaraçados e cheios de hesitação ao iniciar seus passos. Mais ainda: você já notou quais são os anún­cios, nas portas das lojas, que mais atraem a atenção?
    — Jamais pensei no assunto — respondi.
    — Há um jogo de enigmas — replicou ele — que se faz sobre um mapa. Um dos jogadores pede ao outro que encontre determinada palavra — um nome de cidade, rio, Estado ou império —, qualquer palavra, em suma, com­preendida na extensão variegada e intrincada do mapa. Um novato no jogo geralmente procura embaraçar seus adversários indicando nomes impressos com as letras me­nores; mas os acostumados ao jogo escolhem palavras que se estendem, em caracteres grandes, de um lado a outro do mapa. Estes últimos, como acontece com os car­tazes excessivamente grandes existentes nas ruas, escapam à observação justamente por serem demasiado evidentes, e aqui o esquecimento material é precisamente análogo à desatenção moral que faz com que o intelecto deixe passar despercebidas considerações demasiado palpáveis, dema­siado patentes. Mas esse é um ponto, ao que parece, que fica um tanto acima ou um pouco abaixo da compreensão do delegado. Ele jantais achou provável, ou possível, que o ministro houvesse depositado a carta bem debaixo do nariz de toda a gente a fim de evitar que alguma daquela gente a descobrisse.
    — Mas, quanto mais refletia eu sobre a temerária, arro­jada e brilhante idéia de D. . . pensando no fato de que ele devia ter sempre esse documento à mão, se é que pretendia empregá-lo com êxito e, ainda, na evidência deci­siva conseguida pelo delegado de que a carta não se achava escondida dentro dos limites de uma investigação ordi­nária, tanto mais me convencia de que, para ocultá-la, o ministro lançara mão do compreensível e sagaz expediente de não tentar escondê-la de modo algum.
"Convencido disso, muni-me de óculos verdes e, uma bela manhã, como se o fizesse por simples acaso, procurei o ministro em seu apartamento. Encontrei D. . .    em casa, bocejando, vadiando e perdendo tempo como sempre, e pretendendo estar tomado do mais profundo ennui. Ele é, talvez, o homem mais enérgico que existe, mas isso unicamente quando ninguém o vê.
"Para estar de acordo com o seu estado de espírito, queixei-me de minha vista fraca e lamentei a necessidade de usar óculos, através dos quais examinava, com a máxima atenção e minuciosidade, o apartamento, enquanto fingia estar atento unicamente á conversa.
"Prestei atenção especial a uma ampla mesa, junto à qual ele estava sentado e onde se viam, em confusão, várias cartas e outros papéis bem como um ou dois instrumentos musicais e alguns livros. Depois de longo e meticuloso exame, vi que ali nada existia que despertasse, particular­mente, qualquer suspeita.
"Por fim, meus olhos, ao percorrer o aposento, depara­ram com um vistoso porta-cartas de papelão filigranado, dependurado de uma desbotada fita azul, presa bem nomeio do consolo da lareira. Nesse porta-cartas, que tinha três ou quatro divisões, havia cinco ou seis cartões de visita e uma carta solitária. Esta última estava muito suja e amarrotada e quase rasgada ao meio, come se alguém, num primeiro impulso, houvesse pensado em inu­tilizá-la como coisa sem importância, mas, depois, mudado de opinião. Tinha um grande selo negro, com a inicial “D” bastante visível, e era endereçada, numa letra diminuta e feminina, ao próprio ministro. Estava enfiada, de maneira descuidada e, ao que parecia, até mesmo desdenhosa, numa das divisões superiores do porta-cartas.
"Mal lancei os olhos sobre a carta, concluí que era aquela que eu procurava. Era, na verdade, sob todos os aspectos, radicalmente diferente da que o delegado nos descrevera de maneira tão minuciosa. Na que ali estava. o selo era negro e a inicial um "D" na carta roubada, o selo era vermelho e tinha as armas ducais da família S...
Aqui, o endereço do ministro fora traçado com letra feminina muito pequena; na outra, o sobrescrito, dirigido a certa personalidade real, era acentuadamente ousado e incisivo. Somente no tamanho havia uma certa correspon­dência. Mas, por outro lado, a grande diferença entre ambas as cartas, a sujeira, o papel manchado e rasgado, tão em desacordo com os verdadeiros hábitos de D. . ., e que revelavam o propósito de dar a quem a visse a idéia de que se tratava de um documento sem valor, tudo isso, aliado á colocação bem visível do documento, que o punha diante dos olhos de qualquer visitante, ajustando-se perfei­tamente às minhas conclusões anteriores, tudo isso, repito, corroborava decididamente as suspeitas de alguém que, como eu, para lá me dirigira com a intenção de suspeitar.
"Prolonguei minha visita tanto quanto possível e, enquan­to mantinha animada conversa com o ministro, sobre um tema que sabia não deixara jamais de interessá-lo e entu­siasmá-lo, conservei a atenção presa á carta. Durante esse exame, guardei na memória o aspecto exterior e a dispo­sição dos papéis no porta-cartas, chegando, por fim, a uma descoberta que dissipou por completo qualquer dúvida que eu ainda pudesse ter. Ao observar atentamente as bordas do papel, verifiquei que as mesmas estavam mais estragadas do que parecia necessário, Apresentavam o aspecto irregular que se nota quando um papel duro, depois de haver sido dobrado e prensado numa dobradeira, é dobrado novamente em sentido contrário, embora isso seja feito sobre as mesmas dobras que constituíam o seu formato anterior. Bastou-me essa descoberta. Era evidente para mim que a carta fora dobrada ao contrário, como uma luva que se vira no avesso, sobrescrita de novo e novamente lacrada. Despedi-me do ministro e sai inconti­nente, deixando uma tabaqueira de ouro sobre a mesa.
"Na manhã seguinte, voltei à procura de minha taba­queira, ocasião em que reiniciamos, com bastante vivaci­dade, a conversa do dia anterior. Enquanto palestrávamos, ouvimos forte detonação de arma de fogo bem defronte do Hotel, seguida de uma série de gritos horríveis e do vozerio de uma multidão. D. . . precipitou-se em direção da janela, abriu-a e olhou para baixo. Entrementes, aproximei-me do porta-cartas, apanhei o documento, meti-o no bolso e o substituí por um fac-símile (quanto ao que se referia ao aspecto exterior) preparado cuidadosamente em minha casa, imitando facilmente a inicial "D" por meio de um elo feito de miolo de pão.
            "O alvoroço que se verificara na rua fora causado pelo procedimento insensato de um homem armado de mos­quete. Disparara-o entre uma multidão de mulheres e crian­ças. Mas, como a arma não estava carregada senão com pólvora seca, o indivíduo foi tomado por bêbado ou luná­tico, e permitiram-lhe que seguisse seu caminho. Depois que o homem se foi, D. . .retirou-se da janela da qual eu também me aproximara logo após conseguir a carta. Decorri­do um instante, despedi-me dele. O pretenso lunático era um homem que estava a meu serviço."
            — Mas o que pretendia você — perguntei — ao subs­tituir a carta por um fac-símile? Não teria sido melhor, logo na primeira visita, tê-la apanhado de uma vez e ido embora?
            — D. . . — respondeu Dupin — é homem decidido de grande coragem. Além disso, existem, em seu hotel, criados fiéis aos seus interesses. Tivesse eu feito o que você sugere, talvez não conseguisse sair vivo de sua pre­sença "ministerial". A boa gente de Paris não ouviria mais notícias minhas. Mas, à parte estas considerações, eu tinha um fim em vista. Você sabe quais são minhas simpatias políticas. Nesse assunto, ajo como partidário da senhora em apreço. Durante dezoito meses, o ministro a teve à sua mercê. Agora, é ela quem o tem a ele, já que ele ignora que a carta já não está em seu poder e continuará a agir como se ainda a possuísse. Desse modo, encaminha-se, inevitavelmente, sem o saber, rumo à sua própria ruína política. Sua queda será tão precipitada quanto desastrada. Está bem que se fale do facilis descensus Averni, mas em toda a espécie de ascenção, como dizia Catalani em seus cantos, é muito mais fácil subir que descer. No presente caso, não tenho simpatia alguma — e nem sequer piedade — por aquele que desce. És esse monstrum horrendum — o homem genial sem princípios. Confesso, porém, que gostaria de conhecer o caráter exato de seus pensamentos quando, ao ser desafiado por aquela a quem o delegado se refere como "uma certa pessoa", resolva abrir o papel que deixei em seu porta-cartas.
     — Como! Você colocou lá alguma coisa particular?
     — Ora, não seria inteiramente correto deixar o interior em branco. . . Seria uma ofensa. Certa vez, em Viena, D. . . me pregou uma peça, e eu lhe disse, bem-humorado, que não me esqueceria daquilo. De modo que, como sabia que ele iria sentir certa curiosidade sobre a identidade da pessoa que o sobrepujara em astúcia, achei que seria uma pena deixar de dar-lhe um indício. Ele conhece bem minha letra e, assim, apenas copiei, no meio da tolha em branco, o seguinte:
... un dessein si funeste,
s’il n’est digne d’Artrée, est digne de Thyest.
São palavras que podem ser encontradas em Ar trée, de Crébillon.


POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias. ---------------: Victor Civita, 1981. Tradução de Brenno Silveira e outros.

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